Por Karina Rocha
Quem vê Sônia Maria Francelino da Silva, 52 anos, uma pessoa simples, risonha, cativante, temente a Deus e guerreira de oração, não imagina a sua luta por existir oficialmente no Brasil. Esta batalha ainda não chegou ao fim, porque a luta agora é para fazer valer os direitos dos filhos e netos que continuam sem certidão de nascimento.
O incêndio
Sônia, que passou os últimos 32 anos tentando provar que existia, conta: “Lembro-me de ter precisado do registro quando quis voltar a estudar, desde então estou correndo atrás, confesso que foram tantas informações erradas e má vontade das pessoas que cheguei várias vezes a desistir de correr atrás disso”.
Durante as décadas nas quais Sônia não pode ter a sua certidão de nascimento, ficou privada também de vários outros direitos entre os quais estão o acesso à identificação (CPF, RG), trabalho regulamentado (Carteira de Trabalho), escolher governantes (Título de Eleitor), educação básica, profissionalizante e superior, participação nos programas sociais do governo e em concursos públicos. Além disso os danos emocionais causados pela óbvia exclusão social num nível tão elementar foram grandes e se estenderam à vida dos filhos.
Fogo na cidadania
O que levou Sônia a tamanha dificuldade? Apesar de ter sido registrada na infância, ela perdeu esse documento quando era jovem. E ao buscar uma segunda via, descobriu que no cartório de registro civil responsável por guardar suas informações acontecera um incêndio e vários livros de registro, inclusive aquele que continha o seu registro de nascimento, viraram cinzas.
A falta de identificação oficial da mãe negou o direito a filhos e netos. Até quando pode, Sônia manteve os filhos numa escolinha particular da comunidade, que não exigia a certidão e custava trinta reais por mês por filho. Mas as crianças cresceram, as mensalidades ficaram cada vez mais caras e ela não teve mais como pagar. “A escolinha não quis me dar o documento de transferência para uma escola pública com medo de se prejudicar. O único documento dos meus filhos era o cartão de vacina que é aceito para atendimento na rede pública de saúde, só isso.”
“Bombeiras” a serviço da cidadania
Foi quando Rosalia Pereira, assistente social, e na época voluntária da ONG Movimento de Transformação Integral dos Valores Humanos (MOTIVAH), apresentou sua amiga advogada, Joseli Rodrigues, à Sônia. A advogada ficou sensibilizada e resolveu agir em favor desta mulher. A família de Sônia está envolvida nos programas do MOTIVAH de várias formas.
Com a ajuda da advogada, Sonia conseguiu mover um processo junto à 10ª Vara de Família e Registro Civil de Recife. O processo levou um ano para ser concluído. (A espera seria bem maior e custaria entre 1.500 e 2.000 reais se Joseli não tivesse oferecido como voluntária). Sobre sua atuação a advogada diz: “Fiz isto em solidariedade. Sempre tive o objetivo de ajudar pessoas que não têm acesso à justiça. Sônia era tida como uma pessoa que não existe!”.
Ao final deste período ela recebeu o seu registro civil. O processo, no entanto, não poupou Sônia da longa peregrinação por 15 cartórios da cidade, um exame de idade óssea, e o testemunho de duas pessoas que teriam conhecido Sônia na infância. Em um dos cartórios o tabelião se recusou a atendê-la por uma tarde inteira, chegando a fechar as portas ao final do expediente. Ao insistir com ele, Sônia recebeu a seguinte resposta: “Agora eu sei que a sua história é real porque você esperou a tarde inteira”. Ela saiu dali chorando naquele dia.
A chegada da ONG MOTIVAH no Roda de Fogo, bairro pobre de Recife, aconteceu há dez anos. Nessa ONG Sônia não só teve ajuda na busca por identidade, como descobriu a sua vocação. No MOTIVAH ela descobriu o gosto pela profissão de cozinheira e recebeu capacitação em aproveitamento integral dos alimentos através do programa Banco de Alimentos — Mesa Brasil, do SESC. Em 18 de maio Sônia fez aniversário. Com o registro na mão ela finalmente pode comemorar o reconhecimento oficial como cidadã brasileira. “Meu sonho agora é cursar gastronomia, gosto de cozinhar, é minha paixão.”
O incêndio continua
Mas a história não para por aí. Apesar da petição da advogada para que todos os filhos fossem incluídos no mesmo processo, o único filho contemplado para receber o registro civil foi o caçula de Sônia, Felipe. Isto significa que os outros quatro continuam sem registro. Duas filhas de Sônia já têm filhos, dando-lhe então três netos. São sete pessoas ainda sem o registro de nascimento.
A filha mais velha tem duas filhas de 15 e 10 anos. Ambas estudam numa escola particular (porque a pública não as aceita) que aguarda a obtenção do registro civil das alunas. Eduarda, a segunda filha, 18 anos, tem um filho de um ano e meio. Os outros dois filhos de Sônia — Tiago, 16 anos, e Edja, 14 anos —, não podem frequentar a escola.
Os sonhos de Sônia
Durante a adolescência (antes de perder o registro), Sônia teve que deixar de estudar para cuidar da mãe que sofria com câncer de mama. A mãe morreu aos 44 anos e Sônia foi morar com sua avó e outros dois irmãos. Tinha parado de estudar na 7a série do antigo ginasial e hoje sonha em retomar os estudos. “Quero muito voltar pra escola, mas agora só volto com meus filhos, todos juntos, voltando a estudar.”
Onde está a lenha?
Segundo um panfleto distribuído pelo governo federal na campanha mais recente pelo registro de nascimento (que tem o jogador “Ronaldo Fenômeno” como garoto propaganda), a partir de 12 anos, para fazer a certidão de nascimento é necessário apenas apresentar duas testemunhas maiores de 18 anos que confirmem que a pessoa é quem diz ser. Ao insistir com o Cartório da Várzea fui informada pelo tabelião que, diferentemente do que dizem a lei e a campanha do governo, apenas com o aval de um juiz uma pessoa com mais de 12 anos pode conseguir o registro de nascimento.
O cartório agora exige dos filhos de Sônia exatamente o mesmo que exigiu da mãe. Temos uma nova legislação, será que temos um novo cartório? Que lenha é esta que continua consumindo os direitos humanos de tantos brasileiros, anos a fio?
Karina Rocha é jornalista e professora na Faculdade Boa Viagem no Recife e Pesquisadora do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Pernambuco (IFPE). Missionária Urbana da Arca.
Criada pela Visão Mundial, Regional Nordeste II, a cartilha: Sim eu existo: Meu Registro, Minha cidadania, vem mobilizar a Igreja pela erradicação do Sub-registro civil de nascimento. Por isso o nosso convite a reflexão e a essa luta. Vamos juntos e juntas. Baixe a cartilha!