Combatendo a violência doméstica¹: pelo bem-estar da criança até o fim
Sarinha² gostava de brincar em frente à sua casa, mas já fazia três dias que não era vista por lá. Os vizinhos comentavam ter ouvido gritos de socorro na noite anterior. Chamaram a polícia, que arrombou a porta da casa. A criança foi encontrada com queimaduras de terceiro grau no rosto, pernas, braços, peito e costas. Na época, Sarinha tinha apenas 8 anos e, por conta dos ferimentos, ficou internada durante vários meses na Unidade de Tratamento Intensivo, em Fortaleza, CE. Graças a Deus, ela sobreviveu.
E quem machucou Sarinha foi a mãe dela. Ela queimou a filha com uma colher aquecida ao fogo.
Histórias como essa fazem parte do imenso enário da violência doméstica contra crianças e adolescentes no Brasil. Acontecem diariamente, porém a maioria dos casos não é denunciada. Segundo os pesquisadores do Laboratório de Estudos da Criança (LACRI) da Universidade de São Paulo, há um “complô de silêncio” envolvendo profissionais, vizinhos, parentes, familiares e até a própria vítima. Na história de Sarinha, uma das suas professoras relatou que já havia visto a menina com hematomas nos olhos e no pescoço, mas ficou calada porque “teve medo de se envolver com um problema”.
Contra tal situação, são necessárias ações sérias e persistentes, como as do Centro de Defesa de Direitos do Centro de Combate à Violência Infantil (CECOVI). Com uma equipe de nove pessoas (entre elas dois advogados, duas psicólogas, uma pedagoga, uma assistente social e um conselheiro cristão) o CECOVI enfrenta a violência doméstica por meio de assessoria jurídica às crianças e adolescentes vítimas. Em quase sete anos de existência, o Centro já recebeu 283 denúncias de violência contra crianças e adolescentes em Fortaleza, CE e Curitiba, PR; 129 casos foram analisados pelos seus advogados e 98 foram resolvidos. No momento, há 17 novos casos em andamento. Todos os atendimentos são gratuitos.
Além da assistência jurídica, o centro também dá apoio psicológico, social e espiritual à vítima urante todo o processo. Em agosto, foi iniciado um serviço de cuidado também ao agressor. “Estamos atendendo pais enviados pelo Poder Judiciário e pelos conselhos tutelares para cumprir medidas educativas e penas alternativas”, diz Leolina Couto, advogada e coordenadora nacional do CECOVI.
Os casos de violência doméstica não são fáceis. Alguns demoram até cinco anos para ser resolvidos, o que exige perseverança de quem luta pela justiça. “Além da área criminal, o acompanhamento envolve utras instâncias, como a destituição do poder familiar. Temos que acompanhar o caso até o fim”, completa a advogada. O CECOVI acompanhou a história de Sarinha durante quatro anos até um desfecho justo: a mãe foi condenada, cumpriu pena e hoje é proibida de ver a filha, que mora com a avó. Para Leolina, “não é pecado brigar pelos direitos. A omissão contra o mal é o que torna o mundo perigoso”.
Para enfrentar a violência doméstica é preciso unir forças. A coordenadora do CECOVI diz que, além da persistência, é fundamental trabalhar em rede com outras organizações e os órgãos do governo. “Defender os direitos da criança não é apenas cuidar da parte jurídica; precisamos da ajuda de igrejas, profissionais de psicologia, assistentes sociais do governo e outros. Isso só é possível se tivermos uma boa articulação.”
O Centro de Defesa de Direitos funciona, sem custos de aluguel, no prédio da Igreja Asssembléia de Deus Betesda, em Curitiba, PR, graças a uma parceria bemsucedida com a igreja. O apoio financeiro vem de outras organizações cristãs.
Sarinha tem hoje 14 anos e o sorriso de uma sobrevivente. Seis anos após a tragédia, ela ainda faz cirurgias plásticas para restaurar sua pele queimada. As marcas mais difíceis de cicatrizar, no entanto, não estão no corpo, mas na alma. Estas, somente Deus pode curar.
1. A violência doméstica infanto-juvenil é classificada como: física, sexual, psicológica, por negligência e fatal. As estatísticas costumam considerar apenas a física e a sexual como violência doméstica.
2. nome fictício