“Ela não vai ficar paralítica então?”A jovem senhora rearranjou bebê nos braços e bolsa nos ombros ao avistar o ônibus trafegando pela Avenida Caxangá em direção ao centro do Recife.
A hora do rush já tinha passado e a manhã prometia mais um dia de calor intenso. Ela suspirou aliviada ao perceber que o ônibus, pelo menos, não estava abarrotado!
Subiu pela porta de trás juntamente com outras cinco pessoas. Sentou-se numa cadeira vazia, no fundo do ônibus, para poder procurar uma nota de um cruzeiro e em seguida passou pela catraca.
Procurou um lugar para se sentar percebendo que cada banco estava tomado por pelo menos uma pessoa. Não tinha muita escolha. Sentou-se ao lado de uma jovem.
Durante toda esta transação, a menininha que devia ter uns 12 meses, observou atentamente os movimentos da mãe. Na verdade, este caminho já tinha se tornado uma rotina para as duas.
O barulho do ônibus, o cansaço do percurso até ali, o calor, tudo cooperou para fazer a menina ficar sonolenta.
Ela recostou a cabeça no peito da mãe e adormeceu. Foi só aí que a mãe se deu conta de que sua companheira de banco não era tão jovem como aparentava, ou então a menina tinha se casado muito nova! Não devia ter mais que 18 anos. Usava uma aliança no dedo anular da mão esquerda e estava obviamente grávida.
A menina-quase-mãe falou olhando para a bebê adormecida…
— Ela parece um anjinho, tão perfeita!
— É, quando eles dormem assim a gente até esquece do trabalho que dão quando estão acordados né?
— Num sei disso não. O meu primeiro só chega para o mês que vem.
— Você prefere menino ou menina?
— Pra mim tanto faz, visse? Mas o que eu quero mesmo é que venha perfeito.
— Você tem medo do bebê ter algum problema? Por quê?
— Ah, eu vivo aperreada com medo dele nascer com algum defeito. Eu tenho um tio que nasceu com problema. Eu fico tão agoniada quando começo a pensar nisto que até perco o sono!
— Pois vou contar para você uma coisa. Dois meses atrás eu passei uma noite inteirinha acordada preocupada com minha filhinha. Ela estava com 10 meses. Teve uma febre e o único médico da cidadezinha onde eu moro aplicou uma injeção nela.
— Onde é que a senhora mora? Tô vendo que tem um sotaque diferente.
— É porque que sou paulista, mas eu e meu esposo trabalhamos no interior aqui de Pernambuco.
— A senhora saiu de São Paulo para ir morar nos cafundós do Judas, foi?
— Nós somos missionários evangélicos lá.
— Oxe, então a senhora é dos crente?
— Sou sim. Você conhece alguém que é crente?
— Eu tenho umas primas que viraram crente. Num tenho nada contra os crente não, mas eu continuo católica apostólica romana!
— Bom, pelo menos, nós cremos no mesmo Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, não é?
— Pois num é? Mas diga aí, o que aconteceu depois da injeção?
— Ela dormiu dois dias seguidos. Eu fiquei apavorada. No terceiro dia, ela acordou novinha em folha e eu respirei aliviada. Só que o meu alívio durou pouco porque um rapazinho que gosta de ficar lá em casa, foi brincar com ela. Dali a pouco, ele me chamou para mostrar que a perninha esquerda dela não firmava no chão. Antes da febre ela já estava trocando uns passinhos segurando na nossa mão.
— Vixe Maria! E aí, o que a senhora fez?
— Eu levei minha filha para um outro médico numa cidade maior. Este médico disse que minha filha tinha tido pólio, paralisia infantil. Foi neste dia que eu fiquei a noite toda acordada. Fiquei imaginando minha filha numa cadeira de rodas sendo mal tratada pelos meninos da escola. Imaginei até os apelidos que ela ia receber. De manhã eu disse ao meu marido que queria vir aqui para o Recife para tratar dela.
A jovem senhora olhou para a menina-quase-mãe e percebeu que tinha cometido um erro. O medo no seu olhar era intenso.
— Mas você não precisa ficar com medo não. Já tem a vacina contra a pólio aqui no Recife. Eu e meu marido estávamos planejando uma viagem para cá justamente para vacinar a nossa filha. — Só que ela contraiu a febre antes. Você mora aqui, não vai ter este problema. Na verdade, eu estou contando esta história para você justamente para acalmar o seu coração.
— Ela não vai ficar paralítica então?
— Então, a boa notícia é que justamente porque aquele médico doido deu a injeção que fez ela dormir dois dias, o vírus da pólio não conseguiu de desenvolver tanto e causar tanto dano como teria causado se ela se mexesse muito. Não acho que o médico sabia disso. Mas sei que o Médico dos médicos estava e está sempre no controle.
O silêncio da menina-quase-mãe encorajou a jovem senhora a continuar. Sua companheira de viagem estava toda ouvidos.
— O que eu acho é que as noites que a gente passa em claro são uma grande besteira da nossa parte. Deus sabe tudo sobre este bebê que está aí dentro de você. Ele sabe muito mais do que você, porque a Bíblia diz que ele nos tece dentro do útero de nossas mães. Ele sabe o nosso presente, o nosso passado e o nosso futuro.
— Mas e se acontecer uma coisa muito ruim? Porque estas coisas acontecem!
— Se acontecer, eu posso te garantir que Ele não vai te abandonar nem um minuto e que Ele vai dar para o seu bebê uma missão toda especial que só o seu bebê poderá realizar.
A jovem senhora percebeu que a menina-quase-mãe tinha relaxado seus braços e pernas e que uma nova expressão bem mais tranquila tinha tomado o lugar a anterior.
— Na verdade, eu não sei o que Deus tem para a minha filha no futuro. Mas esta doença já teve um efeito positivo. Deus abriu as portas para o tratamento dela aqui no Recife de um jeito tão especial que agora nós temos um grupo de amigos aqui para nos ajudar no nosso trabalho lá no interior. Antes, nós nos sentíamos isolados lá. Agora nós sabemos que não estamos sós e que tem muitos irmãos aqui que nos conhecem e estão dispostos a nos ajudar. Eu estou levando agora minha filhinha para a fisioterapia numa clínica especializada e a médica que nos indicou este tratamento é também especialista nestes casos de paralisia infantil. Eles dizem que minha filha vai conseguir andar sim, mas que eu preciso fazer massagem nela todos os dias para evitar atrofia na perninha afetada.
Houve um breve silêncio no qual as duas jovens mães pareciam ponderar sobre a conversa. A primeira a voltar a falar foi a menina-quase-mãe.
— A senhora não sabe o quanto esta conversa me ajudou. Muito obrigada! Meu marido vai ficar muito aliviado esta noite! Eu vou dormir!
— A menina-quase-mãe se levantou indicando que já estava perto de seu destino. A jovem senhora se virou para abrir passagem para a moça e ao fazer isto acordou sua filhinha.
A moça passou a mão na cabecinha da criança e murmurou: “Deus te abençoe querida”.
Ela desceu no próximo ponto. Mãe e filhinha continuaram no ônibus por mais um tempo. Seu destino era a Rua João Suassuna no bairro Boa Vista. Lá ela levava sua filha para fazer os exercícios que mais tarde continuaria a fazer quando voltassem para o campo missionário no interior de Pernambuco. Nos breves minutos até a descida a jovem senhora foi orando: Senhor, abençoa esta moça, dá a ela um bom parto, cuida do bebê que ela carrega e ajuda-os todos, pai, mãe e filhinho a aumentarem a fé num relacionamento pessoal com o Senhor!
A cada dois meses mãe e filha seguiam para Recife para dar continuidade ao tratamento. Eram hospedadas no Acampamento Peniel. Este ficava na estrada que vai para Aldeia e liderado por um casal de missionários norte-americanos cujo filho também tinha contraído a poliomielite. As duas famílias se tornaram grandes amigas.
A menina desta história é a Eunice Bueno Cunha, ela contraiu a pólio em outubro de 1965. Hoje trabalha na organização Asas de Socorro, parceira da Rede Mãos Dadas.
Por: Elsie Gilbert, missionária e jornalista. Coordenadora da Rede Mãos Dadas, Casada com James Gilbert, mãe de três filhos e de uma filha.